Segunda feira, 1 de junho de 2009
- Puta merda, mal começa o dia e vem essa bomba. (espreguiça) Eu dormi mal pacas.
- Bomba mesmo, né. (entregando papéis pro colega) Eu fico tão chateada quando eu ouço falar disso...
- (estúpido) Qué isso? Pra quê? Por acaso algum parente seu tava lá? (olhando os papéis) Cadê o resto da pauta? Você não quer que eu arrume tudo sozinho, né?!
- Tá aqui (mostrando o notebook). Como você é insensível, cara.
- Tô trabalhando... E jornalista tem que ser sensível em relação a isso, por acaso? (olhando o notebook da colega) Eu não tô nem aí, acho um pé no saco ficar falando sobre isso, só falo porque é trabalho...
- (pausa) Fico triste pela tragédia. (pausa curta) Minha mãe me ligou, triste que só ela... Disse que você-sabe-quem estava lá. Ela sabe que é o bambambam, mas nem sabe quem é direito. (pausa mais longa) Nem acredito que ele pode ter morrido...
- (curioso) E você o conhecia? (apontado) Passa a chave, por favor?
- (esticando o braço pra pegar a chave) De coletiva, festinhas... (entregando pra ele) Nem sabia que eu existia! Era metido.
- (tentando abrir a porta do armário) Merda de armário, sempre emperra... Quer saber o que eu acho?
- Não! (zombando) Jornalista não tem que achar nada...
- Então ainda não entendi qual é do seu sentimentalismo... Tragédia é notícia, se não foi com conhecido seu não pode achar nada também.
- Porra, eu fico triste, né. Não sou que nem você que não consegue enxergar que duzentas e poucas pessoas provavelmente morreram de uma vez e nunca mais vão ser encontradas.
- (distraído) Elas morreram mesmo. (abrindo o armário e pegando uma pasta) Meus pêsames pra família... Cobrirei a matéria... E até, de repente, rezo pelas almas... (olhando pra ela) Mas nem me importo tanto como você. (pausa) Sabe o que mais... (lendo o documento no notebook, mas sem prestar atenção) Minha amiga perdeu duas amigas esse fim de semana em um acidente que nem notícia na Globo foi. Ela tá lá, triste, eu fiquei sentido por ela, (sorrindo de canto e dando nos ombros) mas a vida continua, gata.
- Nossa! Duas? (pausa) Mas, assim, lá foram 228 pessoas, são mais que duas.
- (bravo) E você conhecia essas 200 pessoas, porra? Papo chato, cara. (voltando pro notebook)
- Não, mas... (indignada) Por isso que você um bom jornalista, não tá nem aí pro sentimento de ninguém, faz matéria falando de morte que nem fala da Bolsa... Só pensa em você.
- (pára de fazer o que tá fazendo e se vira pra colega) Peraí. Não é assim, também. (calmo) Eu penso nisso, mas não fico atordoado. Tenho minha vida, sou trabalhador, pego ônibus todo dia... Quando não estou trabalhando fico pensando nos meus problemas... (pausa rápida) Se eu não pensar não tem ninguém que pensa neles por mim. (voltando pro computador, mas sem se concentrar) Só que eu não tenho religião, acho que você sabe disso... E você sabe muito bem que eu não sou mal nem egoísta, a maioria do tempo. Mas todo mundo vai morrer mesmo, o que eu acredito é que às vezes tem que ter esse tipo de tragédia pra não ir matando cada pessoa individualmente... Sabe... Lotar hospital pra que? Se é a hora, é a hora.
(os dois começam a fazer coisas relacionadas ao trabalho, quietos)
- (abaixando a cabeça) Mesmo assim é triste...
- Ainda nesse papo? (zombando)
- (chateada) As pessoas nem se despediram deles...
- Despediram no aeroporto, sabe, pra viajar. (pausa e finalizando o trabalho) Por isso que todo mundo tem que se amar e não pode ter ódio no coração, assim, quando for nossa hora, a gente vai em paz.
- (sorrindo) Eu gostei! Você é insensível, mas isso fez sentido... Mas agora tá parecendo uma bicha falando.
- (faz cara de bobo) Ã? (brincando) Fica quieta! Vem cá, olha... Abri um documento que eu tenho no meu computador. Olha quanta gente morre no metrô aqui em São Paulo por dia. E esse aqui que mostra os homicídios e latrocínios... Ninguém tá nem aí, sabe por quê? (mandando imprimir documentos que tem a ver com a matéria deles)
- Todo mundo sabe disso tudo.
- (levantando e se afastando) Sabe mesmo, mas ninguém fala nada por que tá perto demais... Povo gosta de ver tragédia de longe.
- Pode ser, mas tinha gente famosa lá dentro, você sabe como são essas coisas.
- Sei, é uma das únicas coisas que eu odeio na minha profissão. (sentando no sofá) Tô com um sono da porra (esfregando os olhos)!
- Tô indignada que você não sente nada em relação a esse avião que sumiu... Caiu, sei lá.
- Sinto! (pegando as folhas da impressora) Sinto que quando eu morrer, ninguém vai me colocar na lista de perdas no site do governo do país, e se todo mundo vai morrer, sorte deles que viraram notícia. (deitando no sofá e separando os papéis) E nossa também, se não fosse por notícia íamos morrer de fome.
- Não vou fazer tudo sozinha não. (levantando o colega) Termina isso daí e vamos sair já.
- Demorô, gata. (levantando) Quer almoçar comigo mais tarde? (pisca)
- Pode ser. (sorriso)
(os dois saem)
4 comentários:
achei que eu tendo virado gente normal seria o assunto do dia. maldito aviao que roubou a minha cena.
:/
Cara, muito bem escrito! A dura e crua realidade... Amei! Apesar de ser sobre uma tragédia, mas vc conseguiu mostrar a realidade mesmo, e isso é ótimo! beijos flor!
Seu blog é muito bom... Vou seguir =DD
Abração e sucesso
Bacana
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